Por Mirela Estelles
Coluna Brincando
Hoje gostaria de compartilhar com vocês uma das diversas experiências que tenho buscado desenvolver na minha prática diária como educadora no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Desde 2011, para cada exposição em cartaz, faço uma pesquisa nos registros da cultura tradicional da infância, levantando histórias, músicas e brincadeiras que possam se relacionar com os diferentes contextos apresentados nas exposições, traçando possíveis diálogos e conexões a partir de distintos encaminhamentos.
Assim, escolho apresentar aqui uma das inúmeras ações que pretendem aproximar os visitantes, especialmente as crianças, do universo artístico do museu.
“ Acho que a música tradicional da infância é o que de mais sensível e mais essencial existe na cultura de um povo. É o nascedouro da cultura brasileira. Nestas músicas podemos perceber heranças da cultura africana, ibérica e indígena. Percebe-se um substrato e reconhece que aquilo é Brasil. Gosto de dizer: Qual é o verso que queremos cantar na roda das crianças do mundo? O Brasil é para ser cantado e dançado. Se não cantar e dançar, não se sabe sobre o Brasil.” ( trecho de uma entrevista com Lydia Hortélio)”
A ação aqui vivenciada inaugura a presença dos jogos de versos nas visitas às exposições em cartaz. Na ocasião, o artista Cândido Portinari, ocupava a grande sala do museu. O tema escolhido para a roda de verso foi um canto de trabalho inspirado nas pinturas e esboços que retratavam os trabalhadores. A estrutura do jogo era apresentada e os participantes criavam versos seguindo o ritmo estabelecido. Cada estrofe tinha quatro versos, sendo que, o segundo tinha que rimar com o quarto.
Seguem alguns dos versos criados por crianças entre 8 e 9 anos durante a visita à exposição No Ateliê de Portinari (2011) que exemplificam essa experimentação a partir da referência anunciada acima – canto de trabalho:
“O Besouro é preto, ô danado
Ele é bem pretinho, ô danado
chuleia o besouro, ô danado
bem chuliadinho, ô danado”
Besouro é o nome que os trabalhadores davam para o caroço que tem dentro do algodão, que é muito preto. Na colheita do algodão é muito comum o jogo de verso, para dar ritmo ao trabalho e passar o tempo. A partir dessa estrutura, no mesmo ritmo, as crianças visitantes criaram os versos:
Fui ao museu,
Ver uma exposição.
Quando eu fui perceber,
já estava perdidão.
Suas obras brasileiras,
se revelam na história.
Portinari na infância,
e também na nossa escola.
Fui andando pelo museu,
uma coisa eu encontrei,
foi um trabalhador,
que logo me apaixonei.
Portinari era um pintor
que fazia obra de arte
que pintou o trabalhador
e outras obras de arte
Outro artista que deu sequência no desenvolvimento desta mesma proposta foi Oswaldo Goeldi. Nesse contexto a estrutura do jogo de verso foi escolhida a partir da temática inspirada nas obras da última sala da exposição, onde podíamos encontrar diversas gravuras que retratavam os pescadores – música tradicional da infância:
“Marinheiro encosta o barco,
que a morena quer embarcar.
Ai, ai eu não sou daqui,
Eu não sou dali sou de outro lugar.”
Nesta ocasião, crianças e seus acompanhantes criam os versos juntos em um programa do museu para famílias (Família MAM):
Eu fui ver a exposição
com a Marina e o Matheus.
Vi morte e vi vida,
Me diverti com os filhos meus.
Pescador caiu no mar,
e pescou uma sereia.
Ficou todo enfeitiçado,
bebeu água e comeu areia.
Quando fui na casa assombrada,
uma caveira me assustou.
Aquela caveira danada,
de susto quase me matou.
Quando o céu escureceu,
e o vento soprava forte,
os homens brigaram feio,
e a cidade cheirava morte.
A partir desse registro, podemos perceber que os visitantes trouxeram diferentes percepções com os versos: o que gostaram, o que chamou sua atenção, o que acharam da visita e da exposição em si. Tenho explorado essa dinâmica por acreditar na importância de cantar com as crianças e de poder brincar com as palavras. A música faz parte do cotidiano delas e de sua forma de expressão no ato de brincar. O momento que envolve a brincadeira durante a visita ao museu, é uma vivência que marca significativamente os visitantes na experiência do contato com a arte.
“Tal ressonância, de fato, também pode ser pensada a partir da apropriação subjetiva e particular que aí se configura e, que parece, privilegiadamente, definir a relação mais íntima e singular da experiência diante do texto literário e, fundamentalmente, frente a uma obra de arte. Sendo assim, valeria ressaltar, no meu entender, então, que a ação educativa, para além de seu atributo pedagógico de capacitação, supostamente relacionado à aprendizagem e à construção de conhecimento, deve comtemplar aquilo que, da linguagem, encontra-se necessariamente engendrado no âmbito da constituição de um sujeito e nas implicações de sua estrutura!” (trecho extraído de um díalogo com o psicanalista Marcello Cavaroli acerca de um comentário sobre as ações educativas aqui registradas).