A tradição ioruba é, entre as culturas africanas importadas durante o tráfico negreiro, a que os brasileiros melhor compreendem ou, em muitos casos, a única que parecem considerar relevante.
Pierre Verger explica que tal predominância deve-se provavelmente ao fato de que este fora o último povo africano a chegar em massa no Brasil a partir do final do século XVII, mas principalmente após 1830, quando a cidade-estado de Oyo fora destruída pelos exércitos muçulmanos dos fulanis. Trouxeram consigo uma elite de nobres sacerdotes, príncipes e chefes de Estado dispersos em meio à multidão de gente do povo. Na visão de Gisele Cossard, os iorubas ter-se-iam organizado para escapar à escravidão, promovendo assim a expansão de uma casta de negros livres que já existiria anteriormente em menor escala. Apesar de ignorada pelos livros escolares e anais da história oficial, essa classe média de negros e mestiços foi muito atuante. Desenvolveu-se sobretudo em Salvador e, por ocasião dos fluxos migratórios em direção ao sudeste do País (principalmente após a abolição), veio a exercer poderosa influência sobre numerosas populações afro-brasileiras que viviam em situação sócio-econômica muito inferior, em outras cidades brasileiras. Um bom exemplo disso é a força da colônia baiana que se instalou no centro do Rio de Janeiro no final do século passado, onde viveu a legendária Tia Ciata.
Informações históricas sobre as antigas cidades-estado de Ifé e Oyo, que mais tarde seriam consideradas como partes do reino ioruba, estão sendo processadas a partir de escavações. Leo Frobenius encontrou na atual cidade iorubana de Ile-Ifé, entre os anos de 1910 e 1911, esculturas em metal e terracota que teriam sido construídas durante os séculos X e XI. Essas esculturas, conhecidas como “cabeças de Ifé”, trouxeram novos dados sobre a vida e a arte iorubas; contrariando tudo que era até então concebido como arte tipicamente africana, as esculturas possuíam dimensões naturalistas, sendo confeccionadas com uma liga metálica que combina bronze, chumbo e cobre. Talvez por considerá-las elaboradas demais para serem totalmente africanas, Frobenius supôs terem elas alguma conexão com a arte grega, hipótese hoje descartada. Submetendo-se essas vinte cabeças esculpidas à análise de carbono 14, foi possível determinar o apogeu da civilização que floresceu em Ifé entre os séculos XII e XIV, muito embora haja indícios de que, desde o final do primeiro milênio, os iorubas já trocassem manufaturas com os árabes ao norte de seu país.
Já Oyo vivera seu período de expansão a partir do século XIV, chegando a subjugar os povos vizinhos do antigo reino do Daomé, tendo-se mantido livre da presença européia até o começo do século XIX, quando esta foi arrasada e a autonomia ioruba desmantelada. Só então os negros dessa etnia foram maciçamente incluídos entre os escravos de guerra.
Quando os europeus entraram pela primeira vez nas principais cidades iorubas admiraram-se não só com o seu nível de urbanização, mas com a beleza de sua arquitetura e estatuária sagrada. Cada cidade era organizada em torno do culto a uma divindade específica, a qual muitas vezes relacionava-se intimamente com algum poder ou força da natureza, bem como com o passado mítico das dinastias reais, como no caso de Xangô, Oranian e Ogum. No momento da invasão européia, constatou-se que aquele povo já há muito desenvolvia a metalurgia e produzia sofisticadas manufaturas.
A sobrevivência da tradição ioruba no Brasil também exigiu de seus líderes e seguidores a elaboração de estratégias sincréticas de convivência com a religião oficial. Só que, neste caso, o sincretismo não foi tão aprofundado quanto o fora pelos kongoleses, funcionando mais como um disfarce que lhes permitia uma relativa liberdade de ação, no tocante à realização de seus rituais. Esse mecanismo de disfarce fora anteriormente empregado pelos negros gêges, procedente do antigo Daomé (atual Benin) os quais, segundo alguns estudiosos, além de antecederem a presença ioruba no Brasil, também teriam sido pioneiros em diversos atos de grande importância histórica para a diáspora africana em nosso país, incluindo a fundação de casas de candomblé na Bahia.
Confrarias e irmandades de pretos foram instituições sob cuja “proteção” teriam sido organizados os primeiros candomblés baianos. Mas nos terreiros gêge-nagô, enquanto imagens de santos católicos aparecem em partes mais externas do templo, todos os fiéis sabem que o assentamento da energia está mesmo é nas pedras sagradas, que se encontram veladas sob os panos e plantas dos altares, escondidos da curiosidade e do preconceito de olhares alheios.
Ainda que os povos do Kongo e do Daomé tenham chegado ao Brasil antes dos iorubas, a enorme influência desse último grupo em nosso dia-a-dia cultural demonstra que, de um modo ou de outro, a liderança ioruba foi aceita e reforçada pelas demais etnias afro-brasileiras. Ao nosso ver, um dos fatores que contribuíram bastante para isso foi a conservação do idioma ioruba – pois é na língua que se encontra codificada grande parte das informações que constituem a identidade cultural e religiosa de um povo, e os demais idiomas africanos presentes no Brasil já se teriam fragmentado com o tempo.
O domínio dos iorubas no contexto afro-brasileiro deveu-se também ao emprego de uma sábia diplomacia que pode ser observada na organização multicultural dos terreiros. Além de agruparem num único templo divindades antes cultuadas separadamente em diferentes regiões da atual Nigéria, os iorubas incorporaram ao seu panteão Nanã-Obaluaiê-Oxumarê, a tríade de deuses adorados pelos seus ex-arquiinimigos daomeanos, reservando também um discreto espaço para entidades de ascendência kongo-ameríndia; caboclos, pretos-velhos e exus, no mais das vezes agrupados sob o nome genérico de « eguns » (espíritos dos mortos). Entretanto, o idioma africano ensinado e praticado nos terreiros de filiação mais tradicional é o ioruba arcaico, que impressiona pela “pureza” até mesmo os nigerianos de hoje. A hierarquia interna das casas de candomblé e a linha de sucessão por consangüinidade são bastante rígidas, mas, ao mesmo tempo, observamos que entre sacerdotes, fiéis e freqüentadores do candomblé há pessoas de todas as etnias e classes sociais brasileiras. Isso nos leva a crer que, na verdade, a grande diplomacia ioruba foi a de saber combinar uma estrutura altamente tradicionalista e conservadora a uma base social verdadeiramente inter-étnica e multicultural.
Com êxito inegável, os iorubas conseguiram fazer de seus orixás as divindades africanas mais conhecidas no Brasil. Sete deles (Xangô, Iemanjá, Oxóssi, Oxum, Ogum, Iansã e Ibejí) foram incorporados pela umbanda como líderes das sete categorias básicas (falanges) de espíritos concebidas por esta religião. Oxalá, sincretizado com Jesus, é adorado como a entidade mais elevada, numa escala ascendente de evolução espiritual; Nanã e Omulu, de origem gêge, estão presentes em um degrau hierárquico inferior, pois não chefiam nenhuma falange, ligando-se (na maioria das vezes) aos grupos chefiados por Iemanjá e Iansã, respectivamente. No candomblé, os orixás não costumam falar, comunicando-se sobretudo através dos búzios; na umbanda, os orixás comumente não se incorporam nos médiuns, existindo apenas como uma referência arquetípica que indica simbolícamente o tipo de energia (ou vibração) que caracteriza cada falange, ou grupo de espíritos que se harmonizam entre si.
A cosmogonia ioruba compreende uma divisão básica entre céu (Orum/sol/mundo divino) e terra (Aye/mundo dos vivos). Seu deus supremo, Olorum (o senhor do céu) está no mundo de cima; os heróis/deuses civilizadores são quase todos masculinos, embora o patriarcado ioruba seja mitologicamente ameaçado pela fúria de poderosas matriarcas como Nanã e Olokun (que é masculina em Benin e feminina em Ifé). Sua concepção de energia/força sagrada se define pela constituição do Axé, que é relacionado ao número três e às cores vermelho, preto e branco. Conforme a crença ioruba, Olorum, o Ser Supremo, serve-se de auxiliares para criar, manter e transformar o mundo.
Com efeito, a altivez e o orgulho próprio dos iorubas, bem como seu talento para a promoção social de seus valores culturais e religiosos, fizeram deste grupo um exemplo positivo a ser seguido por toda uma multidão de descendentes de africanos, combatendo a depressão causada pelos séculos de opressão escravagista. Todavia, o exagero dessas mesmas qualidades também facilita a manutenção de injustiças históricas contra outras tradições africanas no Brasil. E assim que todas as coisas belas e importantes feitas por negros neste país são sistematicamente atribuídas aos iorubas, que, então, recebem as honras por façanhas cujo crédito, na realidade, não lhes pertence. Nossa intenção ao destacar esse fato é contribuir para que o legado positivo da liderança ioruba seja priorizado, em detrimento de enganos desta natureza que, conquanto velados, continuarão a existir.