Nos dez quadros do pastoreio do touro, o mestre zen Kaku-as Shi-em na dinastia Sung, ilustrou as etapas da doutrina zen. Ali está o homem, dividido em personalidade e espírito, esquecido da pureza original, lutando contra tudo, incapaz de distinguir entre a falsidade e a verdade. Mas, ao prestar atenção àquilo que o rodeia, percebe, através dos sentidos, a verdadeira natureza das coisas, eliminando toda noção de ganho e perda, de claro e escuro. Enfim, a dualidade desaparece quando se recupera a natureza original.
PROCURANDO O TOURO
O touro, na realidade, nunca foi perdido. Então, por que procurá-lo? Tendo dado as costas à sua verdadeira natureza, o homem não pode vê-lo. Por causa de suas ilusões, ele perdeu o touro de vista. Repentinamente, se acha confrontado por um labirinto de encruzilhadas. Desejos de ganhos e medos de perdas sobem como chamas; idéias de certo e errado aparecem como punhais.
“Desolado através da floresta, com medo, nas selvas, ele procura o touro e não encontra.
Para lá e para cá, grandes rios sem nome;
nas profundezas dos ermos das montanhas ele segue muitas veredas.
Cansado de coração e corpo, continua sua busca por aquilo que não pode ainda encontrar.
De tardinha, ouve as cigarras cantando nas árvores.”
ENCONTRANDO A PISTA
Através dos sutras e ensinamentos, ele vislumbra as pegadas do touro. Foi informado que, assim como diferentes vasos (de ouro) são todos basicamente do mesmo ouro, assim também cada coisa é uma manifestação do próprio ser. Mas ainda é incapaz de distinguir o bem do mal, a verdade da falsidade. Não entrou ainda pelo portão, mas vê, numa tentativa, a pista do touro.
“Inumeráveis pegadas ele viu na floresta e nas margens das águas.
Não é aquilo que ele vê adiante, mato amassado?
Mesmo nas mais profundas grotas ou nos mais altos picos,
não pode ser escondido o nariz do touro que alcança para os céus nas alturas.”
PRIMEIRO VISLUMBRE DO TOURO
Se ele somente escutar os sons de cada pegada, virá à realização e, naquele instante, verá a própria origem. Os seis sentidos não são diferentes desta verdadeira origem. Em todas as atividades a origem está manifestadamente presente. E análoga ao sal na água, à liga na tinta. Quando a visão interna está corretamente focada, realiza-se, que o que é visto é idêntico á origem.
“Canta o rouxinol num galho
o sol brilha nos salgueiros que ondulam;
ali está o touro, onde poderia esconder-se?
A esplêndida cabeça, os majestosos chifres,
que artista pode retratá-lo?”
SEGURANDO O TOURO
Hoje ele encontrou o touro que estava vadiando pelos campos selvagens. E verdadeiramente o pegou. Por tanto tempo se comprazeu nestes arredores que quebrar seus velhos hábitos não é fácil. Continua querendo o capim cheiroso, está ainda indócil e teimoso. Para domesticá-lo, completamente, o homem deve usar o chicote.
“Ele deve segurar firmemente a corda e não soltar
agora ele corre para as terras altas
agora se demora nas ravinas enevoadas.”
DOMESTICANDO O TOURO
Com o nascimento de um pensamento, outro e outro mais nascem também. A iluminação traz à realização, pois estes pensamentos são irreais, já que não surgem de nossa verdadeira natureza. Somente porque a ilusão permanece, são os pensamentos tidos como reais. Este estado de ilusão não se origina no mundo objetivo, mas em nossas próprias mentes.
“Ele deve segurar o touro com força pela corda do nariz
e não permitir que vague sem cuidado.
Ele se torna limpo e claro. Sem cabrestos,
segue o dono por sua própria vontade.”
INDO PARA CASA MONTADO NO TOURO
A luta acabou “ganho e perda” não mais afetam. Ele murmura canções rústicas dos montanheses e toca as cantigas simples da meninada da aldeia. Montado no lombo do touro olha serenamente as nuvens que passam. Sua cabeça não se vira (na direção das tentações). Tente-se, como quiser aborrecê-lo, e ele permanece imperturbável.
“Usando um grande chapéu de palha e capa,
montado e tão livre quanto o ar,
ele alegremente vem para a casa através das neblinas do entardecer.
Aonde quer que vá, cria a brisa fresca,
enquanto que no coração prevalece a profunda tranqüilidade.
O touro não requer nem um talo de capim.”
O TOURO ESQUECIDO, O EU SOZINHO
No dharma não há duas coisas. O touro e sua natureza original. Isso ele reconhece agora. A armadilha não é mais necessária quando o coelho foi capturado, a rede se torna inútil quando o peixe foi apanhado. Como o ouro separado da escória, como a Lua que apareceu entre as nuvens, um raio de luz brilha eternamente.
“Somente com o touro ele pode chegar a casa
mas agora o touro desapareceu e só e sereno senta o homem.
O sol vermelho passa alto no céu enquanto ele sonha placidamente.
Lá embaixo do telhado de sapé jazem, sem uso, chicote e corda.”
O TOURO E O EU SÃO ESQUECIDOS
Sumiram todos os sentimentos ilusórios e desaparecidas estão também as idéias de santidade. Ele não se demora (no estado de “eu sou um Buda”) e passa rápido (pelo estado de “e agora me livrei do orgulhoso sentimento de ser”) para não Buda. Mesmo os mil olhos (dos quinhentos Budas e patriarcas) não podem discernir nele qualquer qualidade específica. Se centenas de pássaros jogassem flores por sua casa, ele só se sentiria envergonhado.
“Chicote, corda, touro e homem pertencem igualmente ao vazio.
Tão vasto e infinito é o céu azul que não há conceitos que o alcancem.
Sobre o fogo flamejante o floco de neve se funde.
Quando este estado é realizado chega finalmente à compreensão do espírito dos antigos patriarcas.”
VOLTANDO A ORIGEM
Desde o começo, nunca houve nem um grão de poeira (para bloquear a pureza intrínseca). Ele observa o crescer e decrescer das coisas do mundo, enquanto permanece sem esforço, num estado de tranqüilidade inalterável. Isto (o crescer e decrescer) não é ilusório nem fantasmagórico (mas a manifestação da origem). Por que, então, é preciso lutar por algum objetivo? As águas são azuis e as montanhas verdes. A sós, consigo mesmo, ele observa o mudar sem fim das coisas.
“Ele voltou à origem, retornou à fonte primeira.
mas seus passos foram em vão.
E como se agora estivesse surdo e cego.
Sentado em sua palhoça, não procura coisas de fora;
fluem de si mesmas as águas correntes,
flores vermelhas desabrocham naturalmente vermelhas.”
ENTRANDO NA PRAÇA DO MERCADO
O portão de sua palhoça está fechado. Nem o mais sábio pode encontrá-lo. O seu panorama mental finalmente desapareceu. Ele vai no seu próprio caminho, não fazendo tentativa alguma de seguir os passos dos antigos mestres. Carregando uma garrafa, passeia pelo mercado; apoiado num bordão volta para casa. Conduz os donos de botequins e peixarias ao caminho de Buda.
“De peito nu e descalço, dá entrada no mercado enlameado e coberto de poeira;
como sorri amplamente
sem recorrer a poderes especiais
faz com que as árvores ressequidas floresçam novamente.”
FONTE: ZEN-BUDISMO. Planeta especial. N. 188-A.
Os dez quadros do pastoreio do touro dizem respeito ao nosso desenvolvimento interior e possui também um significado mais amplo, pois neles se manifesta a busca da própria humanidade. Podemos também associar os quadros ao mito do filho pródigo do cristianismo. O filho pródigo “tendo dado as costas a sua verdadeira natureza”, se perde tal como o pastoreio do touro e perambula pelo mundo buscando a felicidade para, enfim, voltar e encontrá-la na casa do pai.
Os quadros representam nossa própria busca interior, pois todos temos que enfrentar nossos inimigos, que são as recordações, os hábitos e as repetições. É preciso que estejamos atentos a esses círculos viciosos e cansativos cujo peso impede que encontremos a paz e o repouso.
“Todo momento, esteja consciente e vigilante para não se apegar às suas percepções do universo – e os seres dentro dele – como reais e sólidos. Treine a si mesmo para encarar tudo como um jogo de aparições irreais.
RINPOCHE, Patrul. Words of my perfect teacher